Crónica de Mário de Sousa
Não batas com a porta! Disse…
Não batas com a porta! Disse…[i]
Mas ela já ia no seu caminho desaustinado, terminando com estrondo ao embater na ombreira. E eu ficava empolgado com o ruído e dentro de mim, sentia um orgulho enorme, um poder indescritível por ser capaz de gerar aquele pandemónio. A minha mãe encolhia os ombros resignada, a minha avó ‘resmoneava’ com diversas intensidades de ‘Hum, Hum’ e a tia Bernarda abanava a cabeça compondo o carrapito, como se o estrondo a tivesse despenteado. O meu avô, era um pouco duro de ouvido e olhava pela janela para tentar perceber de que lado vinha o ruído.
Para mim era um momento de glória inaudito estas perturbações domésticas. Às vezes ainda a porta não tinha batido gritava que era a corrente de ar, o que no início resultava, mas depois com a continuação, e porque as correntes de ar não se sentiam, ia dizendo que sim senhora, tinha sido mas era fraquinha. Aliás, eu deveria ter recebido uma medalha pelas dezenas de correntes de ar meio tísicas que ajudei ao empurrar o puxador das portas com força.
Não se julgue que ouvindo um estrondo se ouviam todos. Não. Todos eles eram diferentes. A porta da cozinha que abria para o quintal fazia um ruído metálico antes de esbarrar com a chapa testa da fechadura. Já a da sala de jantar, porque eram duas portas com batente ao meio, depois do estrondo ficavam a abanar mais uns segundos parecendo que alguém as estava a tentar abrir.
As dos quartos no 1.º andar tinham como fator atrativo o possuírem bandeiras em vidro. Quando a porta batia, o aro da bandeira estremecia e os vidros tilintavam quais campainhas de cristal. Mas a porta da minha predileção era a do quarto da minha irmã. Para além da bandeira, a fechadura de velha que era, deixava saltar a chave que, porque a cama era mesmo em frente, se enfiava por debaixo dela misturando-se com as tralhas que zelosamente lá estavam guardadas. Resultado: quando dava por falta da chave era vê-la de rabo para o ar com uma lanterna entre os dentes à procura da tão fugidia chave. Mas a vida lá ia andando levando uns puxões de orelhas, uns castigos muito suportáveis e umas admoestações por vezes bastante feias do meu avô.
Estava nas férias da Páscoa que para mim tinham começado dois dias mais cedo porque na euforia da brincadeira, tinha resolvido experimentar com outro colega, os sons das onze portas das salas de aula. A ideia era fazer uma composição musical, mas talvez porque o espírito criativo do diretor não fosse o melhor, fomos os dois presenteados com dois dias de suspensão. O meu avô zangou-se e ameaçou-me pela primeira vez com um colégio em Tomar que para além de ensinar como as outras escolas, tinha também um serviço de endireitar as costas a casos perdidos.
E assim, deambulava uma manhã cedo pela casa, quando vi que a minha irmã se tinha esquecido da porta do quarto aberta. Saltaram-me de imediato os olhos para aquele puxador tão bonito e zás, fechei a porta com estrondo. Tenho de reconhecer que tinha sido o meu melhor momento, mas, a bandeira torceu de mais e o vidro estilhaçou-se, tendo uma lasca de boas dimensões caído, e, roçando-me o corpo, espetou-se na madeira do chão. Era um milagre estar vivo.
O meu avô foi o primeiro a chegar ao local do desastre. Olhou para mim, olhou para a porta, seguiu até à bandeira e por fim para a lasca de vidro espetada no chão. Estava branco, assustado, mas quando viu que eu estava incólume, agarrou-me por uma orelha e exibindo-me meio pendurado ao resto da família, disse para a minha mãe: é este o resultado de se educarem os filhos sem a presença de um pai. Para a semana vai para o colégio de Tomar.
A orelha doía-me, mas ao ouvir a condenação, a alma doeu-me muito mais. Entretanto, o meu avô mandou destroçar a família, largou-me a orelha e num ruído esquisito, meio falado, meio soprado, disse: desaparece da minha vista antes que eu me arrependa de te ter largado.
Corri para o meu quarto e quando ia bater com a porta lembrei-me que talvez não fosse uma boa ideia. Para Tomar não iria nunca. Talvez fugir. Mas para onde? Para já o importante era desaparecer de circulação até arranjar uma forma de me escapulir de casa. Lembrei-me então de um sítio improvável para me esconder até pelo menos à noite: debaixo da cama da minha irmã por de trás das tralhas dela. Num vapt vupt foi isso que fiz.
À hora do almoço chamaram-me, procuraram-me, mas todos os esforços foram infrutíferos. As buscas terminaram quando o meu avô, para quem as horas das refeições eram sagradas, mandou toda a gente para a mesa. Durante a tarde veio o vidraceiro que repôs o vidro na bandeira e os estragos desapareceram. Tudo ficou na paz de Deus.
Tudo não. O meu corpo estava a ficar dorido de estar sempre na mesma posição e ainda só tinham passado umas horas. Por outro lado, o corpo humano tem inerente ao comer e beber duas funções vitais que nos obrigam a arranjar espaço para as próximas refeições e eu comecei a sentir uma moinha desgraçada na barriga. Depois uma dor valente e por fim foi um alívio, mas com um final desastroso.
Chegada a hora do jantar aconteceu o mesmo: toda a gente chamou por mim, tendo a tia Bernarda feito a ronda dos quartos mais a minha irmã. Quando passou pelo quarto dela fungou um pouco e disse: Maria Cecília tens ratos no quarto. E não admira, com todo lixo que tens debaixo da cama isto é um ninho. E olha que pelo cheiro já há bicho morto. Amanhã tens de limpar isto tudo. E seguiram para o jantar.
Aquilo incomodou-me deveras. A posição era incómoda, o cheiro não era dos melhores e a ideia de partilhar o espaço com um rato morto era desoladora. E depois, se havia um rato morto, era porque havia ratos vivos. Fiquei vigilante a novos ruídos.
Terminado o jantar ouvi os passos arrastados da tia Bernarda a subir a escada e pouco depois, a porta do seu quarto fechou-se. Havia silêncio por toda a casa. O avô estava na sala a ler o jornal, a avô no sofá já devia dormir com o queixo encostado ao peito e a mãe e a irmã arrumavam a cozinha. O silêncio imperava na casa. Era a altura de me pôr a ‘fancos’. Devagarinho, virei-me de barriga para baixo, desobstruí o caminho das tralhas da minha irmã e, às arrecuas, comecei a sair do meu esconderijo.
Não fui muito rápido porque sentia medo de deparar com um rato, daqueles façanhudos, com grandes bigodes. Por outro lado, as pernas estavam dormentes. Por fim, saí por inteiro de debaixo da cama. Pus-me de pé. Agitei os braços e as pernas, puxei as calças um pouco para baixo para ficar menos incomodado, e virei-me para a porta. O quarto estava escuro como breu. Dei dois passos e esparrinhei-me todo de encontro a um corpo enorme ao mesmo tempo que senti uma orelha agarrada por uma mão de ferro. A luz acendeu-se e eu vi a tia Bernarda a olhar para mim enquanto ajeitava o carrapito.
Maria Cecília, gritou, já apanhei o rato do teu quarto!
Mafra, 10 de Novembro de 2022
Mário de Sousa
[i] Há uns anos a esta parte, durante uma sessão de poesia e escrita, Licínia Quitério colaboradora deste jornal, lançou um desafio à assistência, que consistia em desenvolver um texto com base na frase que dá título a esta crónica. A ideia esqueceu. Passado todo este tempo lembrei-me e escrevi o que vão ler. Gostaria por isso de dedicar este texto menor à Licínia Quitério.
Muito obrigada, Mário, pelo vivíssimo texto e por se ter lembrado de mim.